sábado, 24 de janeiro de 2015

Quando a nossa música nasceu

Livro do músico e pesquisador americano, Bernie Krause, retrata as origens da nossa musicalidade na natureza selvagem e alerta sobre os efeitos negativos do nosso mundo moderno barulhento. Leia aqui a resenha detalhada.

O Uirapuru, uma das mais belas vozes do Brasil
A maior orquestra do mundo não se encontra nas grandes salas de concerto em Nova York, Londres ou Berlim, e a obra apresentada por ela já foi composta quando nem se sabia da existência do homem na terra. As apresentações da orquestra mais virtuosa e perfeita do mundo acontecem há milhões de anos quando o sol nasce e quando anoitece, no fim do dia, por exemplo nas florestas selvagens da Indonésia, nas selvas montanhosas da Ruanda na África Central ou no mato fechado da Amazônia. É uma orquestra composto por milhares de insetos, peixes, anfíbios, pássaros e mamíferos, cada um executando perfeitamente a sua parte, seguindo desde o nascimento o seu instinto ao invés de uma partitura. 

Fascinado pela beleza, perfeição e riqueza de sons dessa "orquestra", o músico americano e compositor de trilhas sonoras, Bernie Krause, resolveu abandonar a sua carreira nos estúdios da Hollywood para dedicar a sua vida à gravação e pesquisa sobre as paisagens sonoras que provavelmente derem origem à nossa música humana há centenas de milhares anos atrás. A sua pesquisa dos últimos 40 anos foi agora publicada no livro “A grande orquestra da natureza”, lançado em 2013 em português no Brasil pela editora Zahar.

Diferente de quase todos dos seus colegas biólogas e seguindo a intuição de músico, Krause colocou o maior foco de seus estudos no som de um ambiente natural em seu todo ao invés de considerar a voz individual de cada um dos seus habitantes. Familiarizado com a forma organizada das vozes numa composição para orquestra sinfônica, o músico-pesquisador deu logo um palpite fundamental: o conjunto das vozes dos animais na natureza selvagem está longe de ser aleatório e caótico. Krause começou a gravar por longos períodos em ambientes selvagens - seja na savana africana de Quênia, nas florestas tropicais de Bornéu, embaixo da superfície do mar nos recifes de corais em Fiji no Oceano Pacífico, entre outros - e descobriu logo que todas as vozes animais formam um conjunto de sons, complexo e perfeitamente organizado, se relacionando, completando e correspondendo em termos de frequência, intensidade e altura como se seguissem uma grande partitura invisível. Para provar essa sua tese da orquestra da natureza, o americano descobriu uma forma gráfica para ilustrar os eventos acústicos, um diagrama de termo técnico, o espectograma. O livro mostra várias dessas espectogramas para visualizar a multidão dos sons de um ambiente ao decorrer de uma linha de tempo e separados por faixa de frequência. 

A ideia da orquestra da natureza leva logo para uma segunda observação, como mostra o livro de Krause. Será que o berço da nossa música humana era exatamente alí, por exemplo nas florestas tropicais da  República Centro-Africana, onde vive até hoje a tribo dos pigmeus Bayaka? Considerando vários exemplos de tribos isolados da nossa civilização que conseguiram preservar a sua cultura e música tradicional até hoje, é quase evidente que os sons da terra (como vento, chuva etc..) e as vozes dos animais foram as fontes de inspiração da música dos primeiros seres humanos. A música dos Ianomâmi, uma tribo que vive nas florestas tropicais na Amazônia brasileira, por exemplo, reflete e imita bastante o som da água caindo em cima das folhas das copas das árvores durante um aguaceiro, incluindo instrumentos de percussão como paus de chuva. Outro exemplo impressionante mostra como a primeira música humana deve ter surgido como parte de todo o coro das vozes da natureza: é o da tribo Bayaka, já mencionado acima. Krause relata no livro como  as mulheres do Bayaka, depois de uma dessas chuvas fortes tropicais, “se espalham pela  densa floresta de Dzanga-Sangha para coletar sementes e frutos e cantar em explosões sonoras, acompanhando as vozes dos insetos e dos pássaros que retornam depois que a tempestade passou. O canto das mulheres reverbera durante quase dez segundos antes de silenciar, dando a impressão fantástica de que suas vozes continuam para sempre.” (Citação da p. 125 do livro)


Um triste fato, porém, que o livro também revela é que logo agora que estamos redescobrindo a beleza das vozes da natureza e a sua relação com as raízes da nossa música humana, elas estão quase desaparecendo. São raros os lugares no mundo onde conseguimos ainda ouvir os sons de uma natureza intocada e até os sons antigamente familiares para todo mundo como o canto dos pássaros e insetos estão sumindo cada vez mais da trilha sonora da nossa vida urbana. As descrições das paisagens sonoras do livro parecem um pouco como contos de fadas de tão distante eles são da realidade da maioria das pessoas hoje. Nada melhor pra ilustrar isso do que um episódio mencionado por Krause falando de um encontro com Tom Jobim no começo dos anos 90. "Tom passou a noite toda e as primeiras horas da manhã contando histórias da sua infância, quando brincava com os amigos à sombra das árvores da floresta subtropical e fazia música com os animais da mata, que, na época, chegava até os limites da cidade. Para animar suas histórias, o compositor imitava os chamados e os cantos de seus adorados pássaros, anuros e mamíferos, muitos dos quais já estavam extintos havia muito tempo, mas ainda eram lembrados. Sua eloquência e facilidade mostravam que essas vocalizações pertenciam a sua língua materna." (Citação da p. 187 do livro)

"A grande orquestra da natureza" é um livro capaz de mudar a forma como percebemos o mundo sonoro em nossa volta. Na verdade ele é um livro que faz a gente ter consciência da quantidade de sons que acontece a todo instante em nossa rotina diária. Mas isso não significa necessariamente uma descoberta feliz. Pode ser uma experiência chocante prestar atenção no tamanho do barulho e dos ruídos a que estamos expostos e que nossos ouvidos já filtraram a ponto de não percebemos, talvez para não enlouquecer. Vivemos numa sociedade que adora o barulho, onde conseguimos mais atenção através de som alto e onde o ruído de caixas de som quase estourando significa status e poder. O problema é que, mesmo que nós nos acostumamos já com o nível exorbitante de barulho, por exemplo nas grandes cidades, os riscos negativos e nocivos para a nossa saúde continuam os mesmos, como Krause explica em boa parte do livro. Muitos desses efeitos negativos quase todo mundo conhece mas dificilmente vê o papel do ruído como motivo: sintomas de estresse, fadiga e exaustão. Claro que é difícil fugir do barulho das cidades, já que mais da metade da população do mundo hoje tem uma vida situada numa área urbana, mas vale a pena ter consciência da poluição sonora da mesma forma que começamos ter consciência da acumulação do lixo no nosso planeta.

Essa e muitas outras questões sobre a nossa relação sonora com o ambiente e as raízes ancestrais da nossa música, explica o obra revolucionária de Bernie Krause. O livro escrito numa linguagem culta mas bem acessível na tradução de Ivan Weisz Kuck e equipado com uma bibliografia científica extensa e um índice de palavras-chave. Ilustrando de forma impressionante os exemplos sonoros destacados em negrito no livro acompanha uma lista de 64 sons gravados e disponíveis, infelizmente um pequeno ponto negativo, poderia ao meu ponto de vista ser um CD, somente pela página do Soundcloud da editora Zahar (https://soundcloud.com/zahareditora). 

Krause, Bernie: A grande orquestra da natureza - Descobrindo as origens da música no mundo selvagem (Zahar, 2013). Disponível como livro e e-book. Mais informações: http://www.zahar.com.br/livro/grande-orquestra-da-natureza 

Visite também o website da publicação original em inglês e também disponibilizando todas as gravações mencionadas no livro: http://www.thegreatanimalorchestra.com/ 

Entrevista com Bernie Krause no jornal Folha de São Paulo, edição 17/10/2013: Muito além dos sabiás - As paisagens sonoras da natureza selvagem. Acesse pelo link: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/135879-muito-alem-dos-sabias.shtml